TUTELAS PROVISÓRIAS EM DIREITO PREVIDENCIÁRIO: UM DISTINGUISHMANDAMENTAL, NA INTERPRETAÇÃO DO RESP 1.401.560
Provisional judicial protections in social security law: a mandatory distinguish, in interpretation of REsp 1.401.560
Victor Roberto Corrêa de Souza[1]
Alexandre Schumacher Triches[2]
RESUMO: O presente artigo pretende realizar um procedimento de distinção interpretativa do REsp 1.401.560, do STJ, de acordo com o direito à tutela judicial efetiva, à segurança jurídica e à proteção da confiança, bem como em face de outros fundamentos de ordem fática, para que não ocorram injustiças decorrentes da aplicação automatizada do entendimento deste recurso especial representativo de controvérsia, no que se relaciona à devolução de valores pecuniários recebidos por tutela judicial prévia, posteriormente revogada, em processos envolvendo benefícios previdenciários.
ABSTRACT: The present article intends to carry out an distinguish procedure of REsp 1.401.560, of the STJ, according to the right to effective judicial protection, protection of legitimate expectations and legal certainty, as well as other factual grounds, for that there is no injustice arising from the automated application of the understanding of this representative controversy, in which it is related to the return of pecuniary amounts received by prior judicial protection, later revoked, in processes involving social security benefits.
PALAVRAS-CHAVE: direito à tutela judicial;revogação;distinções;proteção da confiança; segurança jurídica.
KEYWORDS: right to judicial protection;revocation;distinguish; protection of legitimate expectations; legal certainty.
- INTRODUÇÃO
O Superior Tribunal de Justiça, por meio do REsp 1.401.560/MT, julgado em 12/02/2014, proferiu, através do procedimento de recursos especiais repetitivos (Tema 692), a seguinte decisão:
“RECURSO ESPECIAL Nº 1.401.560 – MT (2012⁄0098530-1)
RELATOR | : | MINISTRO SÉRGIO KUKINA |
R.P⁄ACÓRDÃO | : | MINISTRO ARI PARGENDLER |
EMENTA: PREVIDÊNCIA SOCIAL. BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO. ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. REVERSIBILIDADE DA DECISÃO.
O grande número de ações, e a demora que disso resultou para a prestação jurisdicional, levou o legislador a antecipar a tutela judicial naqueles casos em que, desde logo, houvesse, a partir dos fatos conhecidos, uma grande verossimilhança no direito alegado pelo autor. O pressuposto básico do instituto é a reversibilidade da decisão judicial. Havendo perigo de irreversibilidade, não há tutela antecipada (CPC, art. 273, § 2º). Por isso, quando o juiz antecipa a tutela, está anunciando que seu decisum não é irreversível. Mal sucedida a demanda, o autor da ação responde pelo que recebeu indevidamente. O argumento de que ele confiou no juiz ignora o fato de que a parte, no processo, está representada por advogado, o qual sabe que a antecipação de tutela tem natureza precária.
Para essa solução, há ainda o reforço do direito material. Um dos princípios gerais do direito é o de que não pode haver enriquecimento sem causa. Sendo um princípio geral, ele se aplica ao direito público, e com maior razão, neste caso porque o lesado é o patrimônio público. O art. 115, II, da Lei nº 8.213, de 1991, é expresso no sentido de que os benefícios previdenciários pagos indevidamente estão sujeitos à repetição. Uma decisão do Superior Tribunal de Justiça que viesse a desconsiderá-lo estaria, por via transversa, deixando de aplicar norma legal que, a contrario sensu, o Supremo Tribunal Federal declarou constitucional. Com efeito, o art. 115, II, da Lei nº 8.213, de 1991, exige o que o art. 130, parágrafo único na redação originária (declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal – ADI 675) dispensava.
Orientação a ser seguida nos termos do art. 543-C do Código de Processo Civil: a reforma da decisão que antecipa a tutela obriga o autor da ação a devolver os benefícios previdenciários indevidamente recebidos. Recurso especial conhecido e provido.” (grifo nosso)
De fato, a uma primeira leitura, parece correto que haja a devolução dos valores recebidos por tutela antecipada, que posteriormente vem a ser revogada, tendo em vista o caráter precário e naturalmente reversível de tal decisão. Há lógica nesse raciocínio, diante da vedação ao enriquecimento sem causa[3], e especialmente quando esse enriquecimento envolver o Erário Público.
Outros órgãos jurisdicionais, curvando-se a este entendimento do STJ, já começaram a seguir esse entendimento, como se vê, por exemplo, na recente revogação[4] da súmula 51 da Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais, que assim dispunha: “Os valores recebidos por força de antecipação dos efeitos de tutela, posteriormente revogada em demanda previdenciária, são irrepetíveis em razão da natureza alimentar e da boa-fé no seu recebimento.”
Entenderam os membros daquele nobre colegiado (TNU), instigados pelo INSS (especialmente após a decisão monocrática havida no STJ, Petição 10.996, DJe 26/06/2017, ainda não transitada em julgado), que o STF já se posicionara sobre o tema, no ARE 722421[5], ao negar a repercussão geral quando a matéria versar sobre a possibilidade de devolução de valores recebidos em virtude de tutela antecipada posteriormente revogada, considerando-se que a solução da controvérsia envolve o exame de legislação infraconstitucional, a configurar apenas ofensa indireta ou reflexa ao texto constitucional. Desta forma, ao fim da discussão, os juízes da TNU optaram pela revogação do enunciado n.º 51, entendendo que a jurisprudência estaria definida, a respeito do tema.
Todavia, com o devido respeito aos julgadores do Tema 692 do STJ[6] e aos membros da TNU, a matéria merece distinções e apreciações de acordo com novas pautas argumentativas que não foram apreciadas na decisão do REsp 1.401.560/MT. Essas pautas são a responsabilidade civil (objetiva/subjetiva), as inovações do Código de Processo Civil de 2015, a distinção entre tutelas definitivas e provisórias e as formas de cognição processual, a distinção entre as tutelas requeridas pela parte e as tutelas concedidas ex-officio, a distinção entre tutelas, de acordo com o momento processual em que são concedidas, e as relações entre segurança jurídica, proteção da confiança e modulação de efeitos das decisões judiciais de concessão/confirmação/revogação de tutela. Nota-se, dentre essas novas pautas, que há debates infraconstitucionais como aqueles atinentes ao novo CPC e à responsabilidade civil da pessoa que recebe uma tutela provisória posteriormente revogadas; mas há essenciais debates constitucionais que ainda não foram feitos, como aqueles atinentes à implicação causada por este Tema 692 ao direito à tutela jurisdicional e o tratamento diferenciado de cada uma de suas espécies (art. 5°, XXXV, da Constituição Federal), ao direito à independência judicial e também ao direito à segurança jurídica, pilar do Estado de Direito, debates constitucionais que demandarão ao STF, inclusive, a revisão do entendimento lavrado no ARE 722.421.
Além disso, essas distinções se fazem urgentemente necessárias diante do fato de que está sendo instalado um grave quadro de insegurança jurídica, pois o INSS, por meio da AGU, começou a cobrar valores pagos a título de benefício previdenciário concedido por qualquer decisão judicial provisória que é posteriormente revogada ou reformada, diretamente nos mesmos autos; bem como começou a inscrever essas cobranças, quando infrutíferas, em dívida ativa, reputando a dívida como certa, líquida e exigível, o que lhe permitiu uma cobrança mais ágil. É o que se observa da leitura dos termos do § 3º [7] do art. 115 da Lei 8.213/91, incluído pela Medida Provisória 780/2017, bem como dos arts. 1º a 3º da Portaria Conjunta AGU/INSS nº 2, de 16/01/2018, publicada no DOU de 22/01/2018[8]. Veja-se, neste diapasão, a grave disposição existente no art. 2º, § 4º desta Portaria Conjunta, estabelecendo um procedimento para cobrança de valores pagos a título de tutela antecipada posteriormente revogada, no qual – grife-se – há dispensa de processo administrativo com instrução, contraditório e ampla defesa.
Portanto, pretendemos desenvolver, no presente texto, um procedimento dedistinguish, de acordo com fundamentos legais e constitucionais até então não abordados pela TNU, pelo STJ ou mesmo pelo STF, aprofundando esse debate, para que não sejam cometidas injustiças decorrentes da aplicação automatizada e apressada do entendimento do REsp 1.401.560 em milhares de processos espalhados pelo Judiciário brasileiro, no que se relaciona à devolução de valores previdenciários recebidos por tutela judicial, posteriormente revogada.
- A HISTÓRIA DO PRECEDENTE VINCULANTE
Até pouco tempo atrás, o Superior Tribunal de Justiça entendia que valores recebidos através de antecipação de tutela eram irrepetíveis, pois eram parcelas alimentares e recebidas de boa-fé. Como exemplo, podemos citar decisões como a do REsp 728.728, do Min. José Arnaldo da Fonseca, a do REsp 1.263.480, do Min. Humberto Martins, ou a do REsp 1.244.182, do Min. Benedito Gonçalves.
Elas são relatadas no turning point da alteração jurisprudencial daquela Corte, havido com o julgamento do REsp 1.384.418/SC, da lavra do Ministro Herman Benjamin. Extrai-se deste julgado, ocorrido em 12/06/2013, a seguinte parte da Ementa: “8. Do ponto de vista objetivo, por sua vez, inviável falar na percepção, pelo segurado, da definitividade do pagamento recebido via tutela antecipatória, não havendo o titular do direito precário como pressupor a incorporação irreversível da verba ao seu patrimônio.”
A partir de então, outros acórdãos passaram a ser prolatados pela Corte neste sentido, tais como os REsp 1.319.769, 1.382.545, 1.339.657, 1.360.838, entre outros, até a edição do acórdão do REsp 1.401.560, utilizado como decisão-modelo, em sede de recursos especiais repetitivos. Julgamentos posteriores do STJ, portanto, vêm utilizando esse paradigma jurisprudencial.
Todavia, assim como o magistrado tem o dever de interpretar o ordenamento para aferir se os fatos a ele se amoldam, cumpre a ele também aferir se o seu caso concreto se adequa ao precedente, vinculante ou não, nos termos do art. 489, §1º, V e 927, §1º, ambos do CPC.
Procederemos, portanto, à demonstração dos fundamentos que, a nosso ver, justificam a distinção entre situações nas quais seria possível a aplicação do entendimento do REsp 1.401.560 e a definição de uma determinada parcela de situações em que esse entendimento não poderia ser aplicado ao caso concreto.
- RESPONSABILIDADE CIVIL
Inicialmente, é importante assentar que o entendimento do REsp 1.401.560, quando feito de modo autômato e generalizado,patrocina uma espécie de responsabilidade civil objetiva, pois obriga aquele que se beneficiou da tutela antecipada a devolver valores recebidos, sem que haja qualquer avaliação da existência de culpa do beneficiado. Todavia, não há embasamento para tal entendimento, em nosso ordenamento. O art. 927, parágrafo único, do Código Civil[9], dispõe que a responsabilidade civil da pessoa que, em tese, vier a praticar algum ato ilícito, na dicção dos arts. 186 e 187 do Código Civil (como, p.ex., não devolver os valores recebidos por tutela antecipada posteriormente revogada), só pode ser considerada sem a análise de culpa (objetiva), se estiver prevista em lei, o que não ocorre.
Vejamos o que dispõe o art. 302 do Código de Processo Civil, único dispositivo que prevê hipóteses de responsabilidade civil envolvendo tutelas processuais:
Art. 302. Independentemente da reparação por dano processual, a parte responde pelo prejuízo que a efetivação da tutela de urgência causar à parte adversa, se:
I – a sentença lhe for desfavorável;
II – obtida liminarmente a tutela em caráter antecedente, não fornecer os meios necessários para a citação do requerido no prazo de 5 (cinco) dias;
III – ocorrer a cessação da eficácia da medida em qualquer hipótese legal;
IV – o juiz acolher a alegação de decadência ou prescrição da pretensão do autor.
Parágrafo único. A indenização será liquidada nos autos em que a medida tiver sido concedida, sempre que possível.
As hipóteses dos incisos II e III se referem a decisões de tutela de urgência que são concedidas e posteriormente são cessadas sem que haja precisamente uma análise do mérito do processo, seja por que o autor não providenciou a citação da outra parte, seja por que a eficácia da medida liminar cessou, como nos casos descritos no art. 309 do CPC; já as hipóteses dos incisos I e IV interessam mais ao objetivo do presente texto, pois se referem especificamente a hipóteses em que há análise de mérito do pedido, com sentença de improcedência, posterior a uma decisão concessiva de tutela à parte autora.
Assim Daniel Mitidiero descreve a interpretação que deve ser feita a respeito deste dispositivo:
“Na verdade, nosso Código é omisso em um ponto crucial da matéria. É verdade que há responsabilidade objetiva no caso da não promoção da citação, uma vez obtida a liminar cautelar (art. 302, II), e em determinados casos de cessação da eficácia da medida (art. 302, III). Nesses casos, a parte interessada não tem de alegar e provar dolo ou culpa da parte que deu azo ao dano injusto por ela experimentado. Todavia, não é possível reconhecer a existência de responsabilidade objetiva quando a parte logra obter antecipação da tutela – seja cautelar, seja satisfativa – e posteriormente o pedido final é julgado definitivamente improcedente. Fazê-lo importaria apagar a existência de um efetivo juízo de cognição sumária sobre a probabilidade de existência do direito. Se a tutela sumária é necessária e devida, conforme a apreciação sumária do juízo, torná-la posteriormente indevida e atribuir responsabilidade objetiva pela sua fruição implica ignorar a efetiva existência da decisão que anteriormente a concedeu. Em outras palavras, significa desconsiderar o juízo sumário, como se nunca houvesse existido, apagando-o retroativamente. É claro que o juiz pode considerar inexistente o direito antes reconhecido como provável. Não pode, contudo, apagar a existência do juízo sumário. O juízo exauriente substitui o juízo sumário, mas não apaga a sua existência. Nesses casos, a responsabilidade civil pela fruição da antecipação da tutela depende da alegação e prova de dolo ou culpa. Vale dizer: é subjetiva, não objetiva. Em outras palavras, é preciso deixar claro que o art. 302, I, CPC, não incide quando a parte logra obter regularmente antecipação de tutela e essa é simplesmente revogada na sentença ou em outro provimento posterior definitivo das instâncias recursais. Na verdade, a responsabilidade objetiva em caso de sentença de improcedência só existe se a antecipação de tutela é obtida de forma injustificada, isto é, com violação à ordem jurídica (por exemplo, com base em prova falsa). Aliás, é exatamente nessa hipótese que o direito alemão prevê responsabilidade objetiva – apenas quando a providência antecipada pode ser considerada ‘injustificada desde o início’ (‘von Anfanganungerechtfertigt’, §945, ZPO) é que há responsabilidade objetiva no caso de antecipação de tutela revogada posteriormente pela sentença.” (MITIDIERO, 2017, p. 188).
Da mesma forma, eis o entendimento do professor Leonardo Greco:
“Diferente é a situação do credor que promove a execução ou do requerente da tutela de urgência. Ele não aufere nenhum benefício, no plano do direito material, da instauração do processo, que não representa para ele nenhuma atividade de que lhe resulte um novo proveito ou um novo lucro. Ao contrário, exerce ele um direito constitucionalmente assegurado de perseguir em juízo um direito preexistente. Por isso, a responsabilidade objetiva, defendida pela doutrina, é a meu ver incompatível com os direitos e garantias fundamentais. Com efeito, a paridade de armas, repercussão processual do princípio constitucional da isonomia, encontra atuação também na tutela de urgência. A responsabilidade objetiva vulnera também o direito de acesso à Justiça do requerente (Constituição, art. 5º, inc. XXXV), criando obstáculo imensurável ao exercício do direito de ação. Com efeito, os riscos que o litigante de boa-fé enfrenta em decorrência do ingresso em juízo devem existir apenas no plano do direito processual e hão de ser predeterminados e módicos, limitando-se aos encargos da sucumbência, para que, devidamente sopesados pelo autor antes do ajuizamento da demanda, influam objetivamente na decisão de vir a juízo, refreando apenas o litigante temerário, e não criando efeito intimidativo excessivo em relação àquele que tem convicção do seu direito.” (GRECO, 2015, p. 367).
Além disso, reputar-se como de responsabilidade objetiva a hipótese do art. 302, inciso I, do CPC implicaria em também aceitar que, inversamente, em caso de sentença de procedência do pedido com deferimento de tutela apenas na sentença, após decisão inicial indeferindo a tutela, deveria haver a mesma responsabilidade objetiva em relação à outra parte. Só que essa hipótese sequer foi mencionada no art. 302 do CPC ou em qualquer outro dispositivo legal. Ou seja, por império da igualdade (art. 5º, I, da Constituição e arts. 7º e 139, I, do CPC), se não há responsabilidade civil objetiva para esta hipótese (sentença de procedência do pedido com deferimento de tutela na sentença, após decisão inicial indeferindo a tutela), também não pode haver responsabilidade civil objetiva para a hipótese de sentença de improcedência do pedido com a revogação da tutela concedida por decisão inicial. Nos dois casos, em respeito ao art. 927, caput e parágrafo único, do Código Civil, a responsabilidade civil deve ser subjetiva. Apenas após comprovação de dolo ou culpa é que se permite a cobrança, nos mesmos autos ou em ação autônoma (respeitados o contraditório e a ampla defesa daquele que se beneficiara), dos valores recebidos por decisão de antecipação de tutela posteriormente revogada em sentença.
Isto não obstante, passaremos a avaliar hipóteses em que também é possível uma diferenciação dos fatos em relação ao paradigma, mesmo em se considerando que a responsabilidade civil devesse ser objetiva.
- FATOS PROCESSUAIS PREVIDENCIÁRIOS
Normalmente, podemos afirmar que as tutelas do direito previdenciário são, em sua imensa maioria, as tutelas de urgência. Há sempre um risco social premente, nestes processos, a demandar a atuação da seguridade social de modo urgente, sob pena de grave prejuízo ao cidadão, parte processual, de modo antecedente ou incidental.
Resumiremos em quatro tópicos principais as hipóteses em que é requerida tutela provisória de urgência, em processo judicial perante o INSS. Em geral, são pedidos em que a pessoa se vê em uma das seguintes situações, estando desempregado(a) ou sem condições financeiras de se sustentar: a) segurado que se encontra em situação de incapacidade laborativa (temporária ou permanente); b) dependente de segurado trabalhador/aposentado do RGPS ou de segurado de baixa renda recluso, que se encontra em desamparo financeiro devido à morte do instituidor da pensão ou à sua reclusão; c) trabalhador/segurado que já completou os requisitos para a concessão de aposentadoria; d) cidadão que se encontre na condição de pessoa com deficiência ou de idoso com mais de 65 anos de idade, cujo núcleo familiar aufira menos de ¼ de salário-mínimo per capita.
Nos três primeiros itens tratamos de benefícios previdenciários, no último, benefício assistencial. Em geral, estamos falando de pleitos de concessão de proteção social a pessoas que fazem parte de classes sociais economicamente mais baixas, portadoras de patologias incapacitantes ou deficiências (itens a e d), ainda sofrendo dos efeitos financeiros e psicológicos pela morte ou reclusão de um ente familiar (item b), ou já padecendo dos efeitos da idade avançada (itens a, b, c e d).
Por razões diversas (quase sempre relacionadas ou por interpretações extremadas do princípio da legalidade na Administração Pública ou por uma equivocada preponderância de diplomas regulamentadores em detrimento da lei), o pleito de proteção social fora indeferido pela Administração Pública e o cidadão teve que buscar a ajuda de um profissional para esclarecer melhor os fatos e tentar a obtenção do seu pleito, pela via jurisdicional.
Quando ajuizada a ação, a descrição dos fatos se concentra, quase sempre, na demonstração do periculum in mora vivenciado pela parte, e que justificaria a tutela provisória de urgência. O fumus boni iuris vem delimitado pela ótica estrita da parte, e com os documentos e demais provas que favoreça o convencimento da existência deste fumus boni iuris.
Se o órgão judicial estiver com acervo controlado e com as rotinas processuais adequadas ao tempo médio razoável para duração do processo, o melhor caminho é aguardar o estabelecimento do contraditório e da instrução probatória, para que a tutela seja deferida apenas após a cognição exauriente do feito, ou seja, para que seja, em vez de provisória, uma tutela definitiva.
Mas, o que fazer quando a realidade dos fatos não pode esperar o trâmite regular da cognição do feito? O que fazer quando um familiar vem despachar com o magistrado a tutela antecipada em que pleiteia a prorrogação de um benefício por incapacidade de uma pessoa da família que está em coma? Ou quando a viúva comparece com seu advogado e dois filhos menores solicitando uma tutela para alimentação da família, tendo em vista o indeferimento da pensão por morte? Como conjugar essa realidade multifacetada da tutela provisória com o entendimento do STJ no REsp 1.401.560?
Não é demais lembrar que o direito à Previdência Social é direito fundamental, conforme previsão contida no artigo 6º do texto constitucional de 1988, em conjunto com a saúde e a assistência social. Trata-se de um sofisticado programa de proteção social, reconhecido como o mais avançado da história nacional. Nesta condição de direito fundamental, a matéria previdenciária guarda íntima relação com o princípio contido no artigo 1°, inciso III, da Constituição Federal de 1988: a dignidade da pessoa humana. Assim, forçoso é reconhecer que deve ser sob este viés que deve ser analisada a decisão do REsp n° 1.401.560, em conjunto com a leitura de distinguish que o presente artigo propõe, para aplicação do referido precedente aos casos concretos. Do contrário, não sendo realizadas com rigor essas distinções, o direito fundamental à tutela judicial efetiva (art. 5º, XXXV, da CF) para o cumprimento do direito à Previdência e à Assistência Social poderá ser gravemente abalado.
Passemos às distinções que devem ser realizadas, por ocasião de julgamentos envolvendo antecipações de tutela judicial sobre benefícios previdenciários.
- OS FUNDAMENTOS DO RESP 1.401.560E O NOVO CPC
Analisando o inteiro teor do acórdão do REsp 1.401.560, e seus precedentes, importa assinalar o cerne de sua fundamentação, de sua ratiodecidendi, para fins de proceder a um correto e preciso distinguish.
Tal fundamentação está concentrada no texto legal do art. 273, §2º, do Código de Processo Civil de 1973, e se destinava a disciplinar, como se vê de seu texto, hipóteses de tutela antecipada, deferida (e revogada) em processos em que houvesse a representação por advogado (pressupondo o dever de conhecimento do caráter precário por parte deste). Segundo o entendimento do recurso especial repetitivo, é válida a cobrança da devolução de valores, nos termos do art. 115, II, da Lei 8.213/91, sendo irrelevante a análise de boa-fé objetiva ou do caráter alimentar dos valores, pois o cidadão não poderia desconhecer que recebe a verba de modo precário.
Não iremos aqui defender o caráter alimentar das verbas recebidas. Essa discussão, em nosso entendimento, é subsequente à definição da possibilidade de devolução de valores. Ou seja, primeiro se define, nos mesmos autos ou em ação autônoma, se os valores são repetíveis ou não; definido esse ponto antecedente, passa-se à análise da possibilidade concreta, no processo de conhecimento e/ou emsua fase de cumprimento/execução, de tal devolução, de acordo com as possibilidades de cada cidadão. Nessa análise aferir-se-á operfil do patrimônio do beneficiado pela tutela posteriormente revogada, através da diferenciação entre bens penhoráveis ou impenhoráveis, para garantir o pagamento da dívida decorrente da necessidade de devolução. É apenas nesse momento em que se analisa eventual caráter alimentar, como se percebe dos arts. 832 e 833, incisos II, IV e X, do CPC.
Também não se discutirá se haveria inconstitucionalidade no art. 115, II, da Lei 8.213/91, o que nos parece matéria incontroversa, a favor de sua constitucionalidade.
Porém, logo de início é possível notar, de modo relativamente simples, que tanto o turning point (REsp 1.384.418), como o REsp 1.401.560, foram julgados anteriormente à publicação do novo Código de Processo Civil (Lei 13.105, publicada em 17/03/2015), de modo que, apenas por esse motivo, o tema já poderia ser trazido à tona, para avaliar-se a possibilidade de sua superação, diante do novo CPC.
A necessidade do distinguishse justifica não só pela leitura do texto dos acórdãos (que sinalizam tratamentos diferenciados para processos nos quais a tutela tenha sido antecipadae nos quais a parte tenha contado com a representação de um advogado), mas principalmente pela existência de um tema, no novel Código de Processo Civil, que ainda não foi abordado pelo STJ, na análise dos processos em que se debata a devolução de valores recebidos por tutela judicial: o princípio da proteção da confiança, agora positivado no Código de Processo Civil, em seu art. 927, §4º.
Ainda, a boa-fé objetiva parece não ter sensibilizado os juízes que participaram do julgamento paradigmático do REsp 1.401.560. É como bem relatam Daniel Machado da Rocha e José Paulo Baltazar Junior:
É difícil aceitar situação que caracterize maior boa-fé do que a da pessoa que, acreditando no Poder Judiciário, ajuíza uma ação na qual, expondo todos os fatos de maneira correta, busca o reconhecimento de um direito que acredita ter sido lesado. Quando o Poder Judiciário reconhece a verossimilhança do direito e antecipa a tutela – em matéria de prestações previdenciárias –, eventual mudança de entendimento jurisprudencial sobre uma determinada tese jurídica não poderia provocar efeitos pretéritos tão danosos. Assim, mesmo que não se negue a natureza precária e o caráter transitório dos pagamentos – motivo pelo qual os valores assim recebidos seriam passveis de devolução, caso a demanda venha a ser julgada improcedente –, em matéria previdenciária a solução não pode deixar de ponderar suas características particulares. Aliás, foram esses os fundamentos que motivaram a aprovação da Súmula n° 51 da TNU. […] De fato, não parece razoável tratar o segurado e o servidor de maneira diferente. Se ao servidor é dado não devolver valores recebidos indevidamente, de boa fé[10], tratamento análogo deve ser dispensado ao segurado da previdência social. Obviamente que não sendo possível, no caso concreto, efetuar a devolução, esta pode ser dispensada.(ROCHA; BALTAZAR JR., 2017, p. 637)
No entanto, a análise da possibilidade ou não da devolução não deve se pautar unicamente pela boa-fé objetiva (dirigido especialmente a relações entre particulares), mas também pela pauta axiológica da segurança jurídica e do Estado do Direito, representados dogmaticamente pelo princípio da proteção da confiança (dirigido exclusivamente para relações entre particulares e o Estado), como veremos.
- PRIMEIRA DISTINÇÃO: ESPÉCIES DE TUTELA PROVISÓRIA
O próprio acórdão do REsp já delimita, claramente, que o entendimento é aplicável à tutela antecipada, que é apenas uma das espécies de tutela provisória.
A tutela provisória é tratada em um livro separado, no Código de Processo Civil de 2015. Trata-se do Livro V (arts. 294 a 311 da Lei 13.105/2015), no qual o estudo da tutela é dividido, basicamente, em tutelas de urgência e de evidência. Já a tutela de urgência pode ser antecipada ou cautelar, bem como ser requerida e deferida de modo antecedente ou incidental.
Luiz Guilherme Marinoni assim descreve o fenômeno processual tutela:
Tutela é a proteção que o Estado deve dar aos direitos, seja mediante normas (tutela normativa), atividades fático-administrativas (tutela administrativa) ou mediante decisões judiciais (tutela jurisdicional). A tutela jurisdicional do direito certamente não pode se confundir com a técnica processual utilizada para viabilizá-la. […] Tutela cautelar é tutela de segurança do direito; é tutela e não técnica processual. A tutela cautelar pode se valer de decisão que ordena sob pena de multa ou de outros meios executivos idôneos à implementação imediata e efetiva da tutela de segurança. Como é óbvio, a decisão que ordena sob pena de multa e os meios executivos nada mais são do que técnicas processuais. A tutela antecipada também é tutela do direito material. Substancialmente, a tutela antecipada é a própria tutela de direito ambicionada pela parte mediante o exercício da ação. É a tutela de direito que o autor pretende obter ao final do processo, mas que é concedida antecipadamente em virtude de perigo de dano. Em outras palavras, tutela antecipada é a tutela do direito que, em vista de uma situação de urgência, é prestada com base em probabilidade ou mediante cognição sumária. (MARINONI, 2017, p. 41-42, grifo nosso).
Fredie Didier Jr.estabelece importante distinção entre tutela provisória e tutela definitiva:
[A] tutela provisória é a tutela que se pretende definitiva concedida após cognição sumária. A tutela definitiva é aquela obtida com base em cognição exauriente, com profundo debate acerca do objeto da decisão, garantindo-se o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa. É predisposta a produzir resultados imutáveis, cristalizados pela coisa julgada. É espécie de tutela que prestigia, sobretudo, a segurança jurídica.(DIDIER JR., 2015, p. 561-562)
Portanto, como a tutela definitiva é aquela deferida após uma cognição exauriente, é fácil verificar que uma tutela concedida em sentença é muito mais vigorosa e irreversível que uma tutela concedida no primeiro despacho/decisão, pois as evidências que vão surgindo com a evolução da instrução processual permitem que se conclua por uma solidificação dos argumentos desenvolvidos pela parte, que inicialmente tendem a ser mais nebulosos e parciais.
Ademais, deve ser lembrado que a sentença que confirma, concede ou revoga tutela produz efeitos imediatamente(art. 1.012, §1°, V, CPC), não se concedendo efeito suspensivo a eventual apelação, de modo que se aplicariam as disposições relativas ao cumprimento provisório da sentença a esta tutela (arts. 297, 519 e 520 do CPC).
Ou seja, se a tutela é concedida após a instrução plena e exauriente dos autos, sem qualquer limitação probatória, e com o respeito ao contraditório e à ampla defesa, entendemos que não se aplica o precedente do REsp 1.401.560, que se destina apenas a casos de tutelas antecipadas, concedidas após cogniçãosumária.
Do mesmo modo, se a tutela provisória é de evidência, em processo com cognição exauriente, não se aplica o entendimento do STJ no REsp 1.401.560, pois nesses casos não se está diante de uma tutela antecipada. É o caso do art. 311, incisos I e IV, do CPC (p.ex.: quando ficar caracterizado o abuso do direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório por parte do INSS ou quando a petição inicial for instruída com prova documental suficiente dos fatos constitutivos do direito do autor, a que o INSS não oponha prova capaz de gerar dúvida razoável). Já quando a tutela de evidência estiver embasada em cognição sumária, como, por exemplo,nos casos do art. 311, inciso II e parágrafo único, do CPC (quando o cidadão apresentar alegações de fato que possam ser comprovadas apenas documentalmente e houver tese firmada em julgamento de casos repetitivos ou em súmula vinculante em seu favor), em que a oitiva da parte contrária é dispensável (art. 9º, par. único, II, do CPC), é possível entender-se que se trata de tutela antecipada, e dessa forma, permitir-se o enquadramento, em tese, no REsp 1.401.560.
Assim sendo, não é justo tratar do mesmo modo, para fins de deferimento de tutela, uma petição inicial que venha apenas com os documentos pessoais principais do autor (juntamente com requerimento de tutela de urgência) com outra, na qual seja apresentada cópia integral e autenticada do procedimento administrativo que indeferira determinado pleito.É possível se observar, em casos em que seja apresentada a integralidade do procedimento administrativo correlato (pelo autor ou pelo INSS), uma decorrente decisão de tutela de evidência, pois haverá a potencial subsunção do caso ao art. 311, incisos I ou IV, do CPC. No direito previdenciário isso é relativamente comum, quando o ponto controverso for uma certidão de casamento ou nascimento, estado civil, idade ou óbito, residência ou coabitação; ou quando a controvérsia estiver afetada apenas a alguma questão jurídica, não havendo fatos controversos quaisquer.
Assim, uma decisão de concessão de tutela que determine a implantação de um benefício, sem analisar argumentos acerca da urgência do direito, e apenas cotejando documentos particulares com o procedimento administrativo apresentado pelo INSS, é mais irreversível que aqueloutra que defira a mesma tutela, sem analisar o conteúdo desse procedimento, apenas com base na urgência. Há uma zona tênue, portanto, na delimitação das espécies de tutela.Marinoni diferencia tutela de evidência de tutela de urgência da seguinte forma:
De lado a tutela cautelar, a técnica antecipatória permite que se dê tratamento diferenciado aos direitos que correm risco de lesão e aos direitos evidentes no procedimento comum. O perigo de dano é um dos fundamentos da tutela antecipada. Porém, o legislador chamou outra forma de tutela antecipada de ‘tutela da evidência’ (art. 311, CPC). Ou seja, qualificou a tutela antecipada fundada em ‘direito evidente’ de ‘tutela da evidência’. O processo linguístico suprimiu a palavra ‘antecipada’, que indica que se trata de tutela do direito prestada mediante cognição sumária, para usar o qualificativo ‘da evidência’, que indica apenas um dos fundamentos para ser tutela antecipada. Em substância, a tutela ‘da evidência’ também é a tutela pretendida mediante o exercício da ação; é a tutela final prestada mediante probabilidade ou na forma antecipada. A diferença é a de que, tratando-se de tutela da evidência, a tutela final antecipada é concedida com base na prova dos fatos constitutivos e na inconsistência da defesa que reclama produção de prova. A tutela da evidência, assim, permite a distribuição do ônus do tempo do processo de acordo com a evidência do direito do autor e com a fragilidade da defesa do réu, afastando-se da tutela antecipada baseada em perigo de dano em razão do seu diferente fundamento e diversa finalidade. Enquanto a tutela antecipada propriamente dita tem como fundamento a urgência e como objetivo a imediata tutela do direito para evitar dano, a tutela da evidência tem como fundamento a evidência do direito e a inconsistência da defesa e como fim a inversão do ônus do tempo do processo. (MARINONI, 2017, p. 43-44).
Destarte, não se aplica o entendimento do REsp 1.401.560 pela necessidade de devolução de valoresrecebidos, se os valores forem provenientes de tutela de urgência definitiva, o que ocorre quando a tutela é: 1) concedida liminarmente e ratificada na sentença, 2) deferida na sentença, ou 3) deferida em sede recursal, nos termos dos arts. 932, II e 1.012, §1º, V, do CPC; ou se forem provenientes de tutela de evidênciade cognição exauriente, como nos termos do art. 311, incisos I e IV, do CPC. Nesses casos, pode-se colher da exclusão realizada pela própria Corte que, na ponderação dos interesses conflitantes, prepondera a importante probabilidade de confirmação dessa tutela definitiva ou dessa tutela de evidência perante a reversibilidade dos valores envolvidos.
Primeira conclusão: não se aplica o entendimento do REsp 1.401.560 a processos em que a tutela judicial tenha sido concedida em cognição definitiva, isto é, quando tenha sido 1) concedida liminarmente e ratificada na sentença, 2) deferida na sentença, ou 3) deferida em sede recursal,nos termos dos arts. 932, II e 1.012, §1º, V, do CPC; bem como em que a tutela seja de evidência de cognição exauriente, como nos termos do art. 311, incisos I e IV, do CPC. Por outro lado, prestigia-se o entendimento do referido acórdão, caso se trate de liminar deferida em cognição sumária, por tutela antecipada, de urgência ou de evidência, que venha a ser posteriormente revogada na sentença.
Mas, ainda há outras distinções possíveis.
- SEGUNDA DISTINÇÃO: CONFIANÇA E TUTELA JUDICIAL
Há novos paradigmas para o direito processual, encontrados no Código de Processo Civil de 2015, que ainda não foram totalmente bem desenvolvidos pela jurisprudência.
Um deles é o princípio da proteção da confiança, que consta no referido Código, no art.927, §4°, in verbis: “§ 4o A modificação de enunciado de súmula, de jurisprudência pacificada ou de tese adotada em julgamento de casos repetitivos observará a necessidade de fundamentação adequada e específica, considerando os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia.”
A doutrina[11] descreve que o princípio da proteção da confiança possui quatro condições básicas para que possa ser empregado, visando aferir se a confiança depositada pelo cidadão no comportamento do Estado é legitimamente digna de proteção. São elas: a) base da confiança; b) existência da confiança no plano subjetivo; c) exercício da confiança através de atos concretos e d) comportamento estatal que frustre a confiança.
O Estado, nas relações com os indivíduos, não poderá ser impedido de adotar posturas que não afetem a confiança do indivíduo. É natural, e às vezes até recomendável, que ocorram mudanças no mundo real dos atos estatais, em busca de alguma evolução para a sociedade. Com as mudanças, poderá, obviamente, haver a frustração da confiança, o que é representado pela alteração da base objetiva da confiança (itens a e d, supra). A questão mais candente, contudo, é observar se há, subjetivamente, confiança a ser protegida (itens b e c), nessas relações entre o Estado e o particular.
O aspecto subjetivo do princípio da proteção da confiança determina que, para que haja uma confiança a ser protegida, é necessário restar comprovado que o indivíduo confiou na continuidade do ato estatal, depositando racionalmente suas expectativas em tal ato.
Dessa forma, podemos excluir alguns atos do âmbito de aplicação do princípio da proteção da confiança, caso não fique comprovado que 1) o cidadão depositou, de algum modo, suas esperanças na manutenção do ato estatal (existência da confiança), e que 2) desenvolveu sua confiança através de atos concretos, nos quais há afetações em relações patrimoniais e extrapatrimoniais de sua vida (exercício da confiança).
Em um primeiro momento, por exemplo, se o particular desconhece totalmente o ato estatal de mudança (a frustração da sua confiança), ou mesmo o ato anterior (a base da sua confiança), não há confiança legítima a ser protegida. É até mesmo intuitivo que a confiança não pode ser cega, desconhecedora do que estaria sendo objeto de confiança. Neste sentido, é bom lembrar que os atos estatais são presididos pela aplicação do princípio da publicidade (v.g.: arts. 37, caput e art. 93, X, da Constituição Federal) e que a ninguém é permitido alegar o desconhecimento da lei, para não cumpri-la (art. 3º da Lei de Introdução ao Código Civil).
Entretanto, não se pode defender que o particular tenha elevado grau de certeza da inalterabilidade de uma determinada situação jurídica, pois nessa hipótese estaríamos diante de uma mudança a termo certo, e não discutindo relações humanas de confiança. Ademais, como vivemos na era da sociedade de risco, não é possível, a qualquer cidadão, ter conhecimento pleno dos atos estatais modificatórios, mormente diante da imensa vulgarização do texto constitucional e das leis infraconstitucionais[12]. Destarte, o fato de haver a publicação de um ato estatal ou a mera utilização do brocardo ignorantia legis non excusatnão são critérios seguros para aferir proteção da confiança, em tempos de profusão diária de normas jurídicas e administrativas, bem como de decisões judiciais, dos mais diversos níveis, muitas vezes altamente complexas, quando não são conflitantes e contraditórias entre si, e em relação às anteriores do mesmo grau, além da instabilidade da jurisprudência previdenciária, até mesmo por divergências internas dos próprios tribunais superiores, seja entre seus órgãos judiciários colegiados internos (turmas e seções) e/ou entre desembargadores e ministros relatores. Como exigir, portanto, que um indivíduo, desconhecedor do mundo jurídico, tenha, sozinho, pleno conhecimento dos atos estatais (e de suas alterações) que estão em vigor?
Por outro lado, há uma presunção legal de que o particular conhece os atos estatais – o da base da confiança e o da frustração dessa base, de modo que será sempre um dever do Estado comprovar que o particular não poderia confiar na continuidade do primeiro ato, da base da confiança. É o caso, por exemplo, de atos de natureza precária, que podem ser revertidos repentinamente, como acontece com as permissões não onerosas de uso de bem público; ou de legislações naturalmente passíveis de mudança e ineficácia, como são as medidas provisórias; ou de atos administrativos temporários, com termo certo para o seu final. Apenas nesses casos, em que os atos estatais são, por sua natureza, provisórios e precários, não há como se permitir a tutela por parte do princípio da proteção da confiança, pelo simples fato de que o particular não poderia alegar que tinha expectativas legítimas na permanência e continuidade do ato de base da confiança. Não há o requisito da existência da confiança. Desta forma, comprovando-se que o particular sempre soube da possibilidade de reversão daquele ato estatal, não há confiança a ser protegida.
Só que a possibilidade de frustração da confiança por meio de uma decisão judicial que revogue outra decisão judicial anterior (v.g.: uma sentença que revogue a tutela concedida em decisão, ou um acórdão que revogue a tutela concedida pela sentença), deve possuir tratamentos distintos, a depender da natureza do ato analisado pela primeira decisão jurisdicional.
Em se tratando de um primeiro ato jurisdicional que decida a respeito de conflito entre particulares, a primeira base da confiança, o primeiro contato do particular com alguma manifestação estatal, será o ato judicial, de modo que a confiança do particular será questionável, se for possível a reversibilidade do ato judicial. É o caso, por exemplo, de uma tutela de urgência eventualmente concedida em uma ação indenizatória, por responsabilidade civil em acidente de trânsito, como se colhe do art. 950 do Código Civil, in verbis:
Art. 950. Se da ofensa resultar defeito pelo qual o ofendido não possa exercer o seu ofício ou profissão, ou se lhe diminua a capacidade de trabalho, a indenização, além das despesas do tratamento e lucros cessantes até ao fim da convalescença, incluirá pensão correspondente à importância do trabalho para que se inabilitou, ou da depreciação que ele sofreu.
Parágrafo único. O prejudicado, se preferir, poderá exigir que a indenização seja arbitrada e paga de uma só vez.
Entretanto, em se tratando de um ato estatal de controle da Administração Pública em relações com particulares, a pergunta que deve ser feita é: houve uma primeira “base da confiança” nos atos dessa mesma Administração Pública? Se houve algum ato administrativo favorável ao indivíduo (concessão ou restabelecimento de benefício previdenciário ao segurado ou ao dependente, por exemplo), ainda que com base em ato questionável por erro administrativo, passível de controle pela autotutela ou de forma heterônoma, pensamos que há, nestes casos, um comportamento estatal precedente que sugere a correção da postura jurisdicional que se alinhe a esta primeira manifestação jurisdicional.
Em outras palavras, uma decisão judicial que defere uma tutela de urgência e se fundamenta, conforme conteúdo dos autos, em decisão administrativa anterior que deferiu a mesma espécie de benefício previdenciário ao autor (e depois foi cessada), possui base, existência e exercício de confiança, diferentemente daquela decisão que defere uma tutela, com base apenas nos argumentos e provas trazidos pelo indivíduo, sem contraditório esem qualquer ato administrativo anterior, favorável ao indivíduo.
Uma decisão judicial de antecipação de tutela possui base de confiança anterior (e também a frustração que lhe seguiu, que é o ato administrativo de cessação);enquanto a outra decisão judicial de antecipação de tutela é a primeira base de confiança do indivíduo, não sendo possível afirmar que haja o requisito da existência de confiança no último caso, por se tratar de situação conhecidamente precária para o beneficiado. Na primeira delas, o indivíduo pode alegar que tinha expectativas legítimas mais evidentes no restabelecimento de sua primeira base da confiança; na outra, o indivíduo não comprova a existência de confiança alguma, antes da decisão judicial. Desse modo, a possibilidade de reversibilidade nos parece mais evidente se não houver qualquer base da confiança; enquanto a existência desta denota que qualquer decisão judicial de deferimento de tutela, com o mesmo fundamento utilizado na base da confiança inicial, estará bem mais próxima da irreversibilidade.
Segunda conclusão: não se aplica o entendimento do REsp 1.401.560 a processos em que a tutela antecipada de urgência se fundamenta em decisão administrativa anterior que deferiu a mesma espécie de benefício previdenciário ao autor, em respeito ao princípio da proteção da confiança. Por outro lado, prestigia-se o entendimento do referido acórdão, caso se trate de liminar deferida em cognição sumária, por tutela antecipada de urgência com base apenas nos argumentos e provas trazidos pelo indivíduo, sem contraditório efetivo e sem qualquer ato administrativo anterior favorável ao indivíduo, que venha a ser posteriormente revogada.
- TERCEIRA DISTINÇÃO: A PRESENÇA DO ADVOGADO
Já se viu que os dois precedentes do STJ mencionam, expressamente, que é presumível o conhecimento da possibilidade de devolução de valores, tendo em vista que a parte é representada por advogado.
Esta afirmação liga-se consistentemente com o princípio da proteção da confiança, pois espera-se que os advogados, como profissionais jurídicos que são, tenham o conhecimento adequado da existência da base da confiança de seus clientes (primeiro ato estatal favorável), bem como da posterior base de frustração dessa confiança (segundo ato estatal, prejudicial em relação ao primeiro), o que permitirá comprovar a existência da confiança de seu cliente no primeiro ato, e o exercício dessa confiança. Comprovado o cumprimento destes deveres por parte do magistrado, muito mais fácil é aferir a confiança legítima do seu cliente.
De outro lado, se não há advogado (como em processos de juizados especiais), ou se a defesa técnica é notoriamente mal realizada (por pessoa que não tenha autorização da OAB para a representação ou não tenha procuração nos autos, por exemplo), não há como presumir a correta informação e interpretação sobre os atos estatais que justificam a base objetiva da confiança e sua posterior frustração.
Assim sendo, e com base na própria interpretação literal do REsp 1.401.560, não é possível exigir seu cumprimento, quando, no momento da concessão, a parte não está representada por advogado ou quando a concessão de tutela antecipada posteriormente revogada adveio de processo em que o representante não tinha autorização da OAB para o exercício profissional ou não tenha procuração nos autos.
Terceira conclusão: não se aplica o entendimento do REsp 1.401.560 a processos em que, na data da decisão liminar de tutela antecipada de urgência, a parte não estava assistida ou representada por advogado, ou, havendo tal representante, este não tivesse autorização da OAB para o exercício profissional ou não tivesse procuração nos autos. Por outro lado, prestigia-se o entendimento do referido acórdão, caso se trate de liminar deferida em cognição sumária, por tutela antecipada de urgência que venha a ser posteriormente revogada, em processo com a presença de advogado constituído regularmente nos autos.
- QUARTA DISTINÇÃO: TUTELA CONCEDIDA EX-OFFICIO
O direito à tutela jurisdicional é inteiramente de matiz constitucional, ex vi do art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal: “XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
Ou seja, é direito fundamental do cidadão obter do Judiciário alguma decisão que impeça lesão ou ameaça a direito.
Como foi ressaltado na própria decisão do STJ, no REsp 1.401.560, a possibilidade de concessão de tutelas antecipadas adveio do grande número de ações em curso e do tempo demorado para uma decisão final com tutela definitiva, após cognição exauriente dos feitos. Caso não adotasse medidas visando à proteção do requerente da tutela, o Judiciário, a pretexto de aguardar a conclusão de seus processos para aferir se a parte detinha o direito alegado, poderia ser um indesejável protagonista de lesão ou ameaça a direito do cidadão, tão-somente pelo decurso do tempo do processo judicial.
A base constitucional para o direito de acesso à ordem jurídica justa e efetiva, com o conexo direito à tutela jurisdicional, é bem delineada por Eduardo Arruda Alvim:
Desse modo, uma primeira ideia que é importante fixar é a de que o fenômeno da tutela provisória deve ser estudado também, necessária e ontologicamente, a partir de um prisma constitucional. Se o acesso à justiça encontra-se garantido inclusive em relação à ameaça de lesão (CF, art. 5°, XXXV), é certo que, em muitos casos, esta somente pode ser obstada através de uma tutela de urgência, como é o caso da antecipação de tutela e da tutela cautelar, espécies das tutelas provisórias de urgência. Por outro lado, tendo-se como princípio constitucional a razoável duração do processo (CF, art. 5°, LXXVIII), afigura-se-nos inapropriado impingir ao autor o ônus do tempo, ainda que tenha ele probabilidade de se sagrar vitorioso na demanda, em razão da insubsistência da defesa do réu, que não logra ilidir a plausibilidade das razões do demandar. Com efeito, tem o autor, nessa hipótese, direito a não ser submetido à demora provocada pelo réu, devendo-lhe ser prestada com celeridade a tutela jurisdicional. A isso se deve a previsão da tutela de evidência. (ALVIM, 2017, p. 24-25).
No CPC de 2015 não há permissão nem vedação à concessão de tutela antecipada ex-officiopelo magistrado. Na doutrina,há controvérsias, mas de certo modo, prevalece o entendimento de que não é possível essa atuação ex-officio[13].
Inobstante, nos termos do art. 297 do CPC/2015, continua existindo o poder geral de cautela do magistrado, para determinar as medidas que reputar necessárias e adequadas para proteger uma parte diante da outra, quando houver fundado receio de que uma parte possa causar a outra lesão grave e de difícil reparação, antes do julgamento da lide.
Assim, o próprio STJ já consagrou a possibilidade de concessões de tutela antecipada ex-officio, como se colhe do precedente no REsp 1.309.137, da lavra do Ministro Herman Benjamin, mesmo relator do leading case havido no REsp 1.384.418. Eis importante trecho do referido REsp 1.309.137:
“[…]
- A doutrina admite, em hipóteses extremas, a concessão da tutela antecipada de ofício, nas “situações excepcionais em que o juiz verifique a necessidade de antecipação, diante do risco iminente de perecimento do direito cuja tutela é pleiteada e do qualexistam provas suficientes de verossimilhança” (José Roberto dos Santos Bedaque, Tutela cautelar e tutela antecipada: tutelas sumárias e de urgência, 4ª ed., São Paulo, Malheiros, 2006, pp. 384-385).
- A jurisprudência do STJ não destoa em situações semelhantes, ao reconhecer que a determinação de implementação imediata do benefício previdenciário tem carátermandamental, e não de execução provisória, e independe, assim, de requerimento expresso da parte (v. AgRg no REsp 1.056.742/RS, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJe de 11.10.2010 e REsp 1.063.296/RS, Rel. Min. Og Fernandes, DJe de 19.12.2008).
Portanto, é possível a tutela antecipada ex-officio, sem que haja requerimento da parte, algo que é assaz corriqueiro, especialmente em processos de Juizados Especiais, pautados pela oralidade, informalidade e simplicidade, e nos quais é possível que a parte sequer seja representada por advogado.Neste sentido, eis o que dispõe o Enunciado 86 do FONAJEF, redigido em 2007: “A tutela de urgência em sede de Turmas Recursais pode ser deferida de ofício”. Esse enunciado é comentado por Bruno Augusto Santos Oliveira:
Como encontra fundamento no poder geral de cautela, cuja disciplina não foi substancialmente alterada no novo Diploma Processual, pode-se afirmar que permanece na nova ordem a possibilidade do deferimento de ofício pelas Turmas Recursais, integrantes que são do Poder Judiciário, inseridas no sistema dos Juizados Especiais. […] Importante pontuar, sobre o tema, que há discussões doutrinárias sobre se esse poder de cautela da Turma Recursal se restringiria apenas à medida cautelar, ou também se aplicaria à antecipação de tutela. Contudo, a aplicação dos princípios do microssistema dos Juizados, notadamente o da celeridade, da informalidade e da fungibilidade, permitem que se leia o Enunciado em seu sentido mais amplo, abarcando ambas as possibilidades. (In BOCHENEK; KOEHLER; NASCIMENTO, 2017.a, p. 52-53).
Muitas vezes, o cidadão sequer compreenderá se o deferimento de sua pretensão teve origem administrativa espontânea (como, por exemplo, em sede de recurso administrativo) ou advém de controle judicial, por tutela ex-officio. Como poderá ressarcir ao Erário algo que sequer pleiteou ao Judiciário? Não nos parece justo que deva responder por algo que sequer requereu. Como não deu causa ao suposto dano ao Erário, não pode ser responsabilizado a devolver qualquer quantia, visto que sua conduta não se subsume, em hipótese alguma, em atos civilmente ilícitos (arts. 186 e 187 do Código Civil).
Todavia, isto não pode ser confundido com qualquer tipo de coação à independência do Poder Judiciário, para adotar as medidas de cautela, inclusive por tutelas antecipadas concedidas ex-officio, que reputar pertinentes à prolação de uma decisão final segura e eficaz a respeito do objeto da lide.
É notório que a interpretação literal e autômata do conteúdo do REsp 1.401.560 do STJ tem levado a julgamentos, pelas instâncias inferiores, que têm afetado o direito à tutela jurisdicional do art. 5º, XXXV da CF, pois está havendo a presunção generalizada de que todo e qualquer valor recebido por meio de tutela, sendo posteriormente revogada,deverá ser devolvido. Desta presunção – não prevista no ordenamento, frise-se – está decorrendo a tibieza da atuação judicial, no que atine ao controle e expedição de decisões de tutela, mesmo flagrante a subsunção dos fatos a alguma hipótese prevista nos arts. 294 a 311 do CPC, ferindo de morte a independência judicial para apreciação de pedidos de tutela.
Em outros termos: o fato de a parte tutelada não responder por eventuais ressarcimentos ao Erário pela tutela a ela concedida não pode representar, em hipótese alguma, impedimento à jurisdição livre e independente para avaliação de eventuais tutelas, concedidas ex-officioou mediante requerimento.
Quarta conclusão: não se aplica o entendimento do REsp 1.401.560 a processos em que a decisão de tutela antecipada tenha sido deferida ex-officio. Por outro lado, prestigia-se o entendimento do referido acórdão, caso se trate de liminar deferida em cognição sumária mediante requerimento, por tutela antecipada de urgência que venha a ser posteriormente revogada.
- QUINTA DISTINÇÃO: A MODULAÇÃO DE EFEITOS
A aplicação do princípio da proteção da confiança em relação à atividade judicial advém do fato de ser imprescindível uma compatibilização mínima da necessidade de proteção de expectativas com a independência judicial, já que alterações bruscas de entendimentos jurisprudenciais consolidados nos tribunais devem ser impedidas. Essas alterações até poderiam ocorrer, mas desde que haja fundamentação minuciosa, racional e segura, com abertura interpretativa às partes e com um contraditório amplo e material, envolvendo a participação efetiva das partes do caso concreto e de eventuais terceiros interessados na permanência ou alteração daquele status quo.
De se grifar, por outro lado, a possibilidade de produção de verdadeiras normas judiciais de vinculação ampla e imediata, através da teoria dos precedentes judiciais e das súmulas vinculantes[14]. Ora, a confiança não deve engessar o Direito e sua interpretação; mas o cidadão que confia na interpretação até então existente nos tribunais, em especial nas cortes constitucionais, deve ser respeitado. Não se deve cercear a independência judicial, mas é recomendável que uma mudança de entendimento jurisdicional venha a incidir apenas sobre fatos ocorridos após seu devido conhecimento, em especial por meio de decisões vinculantes ou de cunho coletivo emanadas das cortes superiores.
Mesmo raciocínio deve existir em relação aos efeitos de decisões judiciais havidas, no curso de um mesmo processo.
Dessa forma, a revogação de uma tutela antecipada pode ser adotada pelas instâncias superiores do processo, ou pela primeira instância na sentença, mas fixando-se uma data para produção de seus efeitos, em respeito aos valores constitucionais da segurança jurídica e do Estado de Direito.
Nesse sentido, leia-se a contribuição de Valter Shuenquener de Araújo:
Tendo em vista que o juiz tem competência para introduzir, no ordenamento, os comandos oriundos de uma determinada interpretação normativa, ele também deverá possuir, conforme sustenta Thomas Probst, a competência para dispor sobre o modo como a transição para uma nova jurisprudência se dará. Incumbe ao juiz tomar as medidas que sejam necessárias para que uma nova jurisprudência seja mais facilmente aceita. Dentre essas providências, está inserido o pode implícito (impliedpower) de deslocar os efeitos de uma nova orientação para o futuro, atribuição que não viola o princípio da separação de poderes. (ARAÚJO, 2009, p. 204).
Ou seja, poderá o órgão colegiado da instância ad quem(e também o magistrado na primeira instância, na sentença) definir, fundamentadamente, que a revogação dos efeitos se dará de modo extunc, ex nunc ou mesmo em momento prospectivo, ou de modo parcelado, de acordo com parâmetros como a maior ou menor boa-fé objetiva do cidadão, ou mesmo avaliando a real possibilidade da devolução de valores e as dificuldades fáticas de tal devolução.
Essa distinção já pôde ser delineada no REsp 1.384.418, no qual o ministro Herman Benjamin entendeu que a devolução poderia ser feita pelo INSS com “o desconto em folha de até 10% da remuneração dos benefícios previdenciários em manutenção até a satisfação do crédito, adotado por simetria com o percentual aplicado aosservidores públicos”.O próprio Decreto 3.048/99, Regulamentador da Previdência Social, prevê, em seu artigo 154, §3º, a possibilidade de devolução de valores ao INSS, de modo parcelado, em percentual de “no máximo” trinta por cento.MarcelleRagazoni Carvalho Ferreira, comentando a extinta súmula 51 da TNU, descreve outra possibilidade:Uma alternativa proposta por Rocha e Baltazar seria manter o pagamento do valor correspondente ao salário-mínimo, pelo menos, ou seja, a se admitir o desconto, este não poderia reduzir o benefício a valor inferior àquele, afirmando que ‘descontos que reduzam os proventos do segurado à quantia inferior ao salário mínimo ferem a garantia constitucional de remuneração mínima e atentam contra o princípio do respeito à dignidade da pessoa humana’, nos termos do que restou decidido no julgamento da apelação cível AC 5009731-71.2011.4.04.7122, 5ª T., Rel. p/acórdão: Rogério Favretto, DE 28.11.2012. (In BOCHENEK; KOEHLER; NASCIMENTO, 2017.b, p. 269).
A modulação, portanto, também deve começar a ser aplicada para evitar-se a surpresa do jurisdicionado e a violação à sua segurança jurídica, tendo em vista que se encontra amparado por alguma decisão de antecipação de tutela. Todavia, deverá ser decisão que estará sob o crivo do órgão jurisdicional. Esta decisão poderá ser tanto aquela da instância a quo, ao revogar, com modulação de efeitos, na sentença, a tutela concedida liminarmente; como poderá ser aquela da instância ad quem, no mister recursal, modulando-se os efeitos da sua decisão de revogação.
Quinta conclusão: ainda que se aplique o entendimento do REsp 1.401.560, em caso de tutela antecipada de urgência que venha a ser posteriormente revogada, caso não se aplique nenhuma das quatro hipóteses anteriores de distinguish, é possível ao órgão jurisdicional competente para a revogação, residualmente, definir um termo inicial para a produção de efeitos de tal revogação, de acordo com o princípio da proteção da confiança legítima nos atos jurisdicionais, bem como na segurança jurídica, base do Estado de Direito.
- CONSEQUÊNCIAS DA APLICAÇÃO SEM DISTINGUISH DO ENTENDIMENTO CONTIDO NO RESP 1.401.560
A operacionalização do distinguishacerca do REsp 1.401.560 ganha substancial relevância quando nos deparamos com algumas consequências práticas da sua não operacionalização, em determinadas hipóteses concretas. Aaplicação do REsp 1.401.560 sem critérios adequados de distinção, na seara previdenciária,poderá causar prejuízos aos segurados e também à própria prestação jurisdicional, produzindo algumas severas injustiças.
As situações “falam por si”.Pensemos no caso de uma tutela judicial concedida em cognição definitiva, isto é, quando já concedida liminarmente e ratificada na sentença, ou deferida na sentença ou em sede recursal, ou quando a tutela concedida seja de evidência e de cognição exauriente.O recebimento do benefício pelo segurado, quando já transcorrido certo período de tempo entre o indeferimento administrativo e a decisão judicial, é medida de inevitável necessidade. A ratificação em decisão final do processo na primeira instância, ou após a instrução do processo, traz um grau de confiança razoável ao postulante do benefício, e é, na maioria dos casos, a única fonte de renda possível, para sobreviver com vida digna.
O INSS, não raras vezes, recorre de decisões/sentenças com o intuito de discutir índices de correção monetária e critério de juros legais, recursos processuais que, não raras vezes,perduram anos aguardando decisão do STJ ou do STF, para uniformização. Nesse sentido, relembramos a tramitação do RE 870.947 (Tema 810), pelo STF, no qual se decidiu, no último dia 20.09.2017, a questão relativa à validade da TR (taxa referencial) como índice de correção monetária para pagamentos de débitos do INSS em causas previdenciárias. A corte, por maioria, reconheceu a existência de repercussão geral da questão constitucional, suscitada em 17.04.2015. Ou seja, o STF demorou mais de dois anos para o julgamento da questão, após sua admissibilidade, o que resultou no sobrestamento de milhares de processos no Brasil.
Bastando que haja recursos similares sobre determinada matéria de direito para que sejam suspensas centenas ou milhares de outros processos sobre essa mesma matéria, pouco importará se há outros fundamentos a serem analisados nesses mesmos recursos. E é exatamente nesse ponto onde reside o problema. É que, na realidade multifacetada do Direito Previdenciário, tantos outros recursos interpostos pelo INSS não guardam relação unicamente com esses consectários legais, mas sim com a matéria de mérito específica (o direito à aposentadoria, ao auxílio-doença, à pensão, ao benefício assistencialetc…).Em tais situações, o deferimento da tutela é quase decorrência lógica da situação retratada no processo (sendo facilmente dedutíveis o periculum in mora e o fumus boni iuris). Porém, com o entendimento pela presunção de necessidade de devolução de todo e qualquer caso de tutela provisória que venha a ser revogada posteriormente,deferir uma tutela (ou mesmo mantê-la em vigor) poderá se tornar uma atividade judiciária de risco, a impedir o deferimento de uma tutela e com isso ferir o art. 5º, XXXV, da CF. Concedida judicialmente uma tutela antecipada que posteriormente não seja confirmada,tal decisão de concessão de tutela para a implantação do benefício terá que ser muito bem analisada e confrontada com os parâmetros de distinção que apresentamos, a fim de se evitar cobranças injustas a quem apenas estava aguardando uma definição do entendimento jurídico pelas cortes superiores.
Conciliar a espera com a efetividade torna-se prioridade em casos tais quais o relatado, o que só poderá ser feito mediante a distinção do REsp 1.401.560 em relação ao caso concreto. E, de outro lado, não há como se pensar na espera sem fim da solução de temas relacionados a tribunais superiores quando o segurado demonstra, de fato, o periculum in mora caso não obtenha a tutela e o fumus boni iuris consagrado na apreciação judicial de sua postulação.
Por outro lado, são comuns as hipóteses em que o magistrado concede o benefício previdenciário ex-officio, via tutela de urgência. Em ocorrendo uma situação como essa, algumas perguntas parecem pertinentes. Assim, caso o segurado, através de seu advogado, reprimido quanto à ideia da urgência, não queira correr o risco de perceber as parcelas antecipadas, como deverá proceder? Aguardar uma definição jurídica suprema de seu pleito para se alimentar? O juiz deverá fechar os olhos ao art. 5º, XXXV, da Constituição Federal? Como conciliar o suposto grau de certeza do acerto no deferimento da medida com a possibilidade de alteração da decisão mediante a interposição de recursos pelo INSS? E, em caso de oposição ao deferimento da medida, que foi deferida de ofício, caberia a interposição de qual remédio processual, por parte do segurado? Agravo de medida cautelar? Embargos de declaração? Ou recurso inonimado? O cidadão deveria agravar da decisão que lhe deferiu alimentos com base em qual fundamento? Ele será ilegalmente constrangido a afirmar que não há periculum in mora no seu pleito? Ou a afirmar que o direito que postula é de frágil argumentação? Ao final, no caso da necessidade de devolução, como negar a boa-fé do autor da demanda, se não foi ele quem postulou a medida de urgência? Acreditamos que o leitor, a essa altura, já pôde perceber os diversos contrassensos que podem ser produzidos pela aplicação automatizada do REsp 1.401.560.
Situação não menos esdrúxula, fruto da aplicação sem distinção ao caso concreto da decisão do REsp 1.401.560,é aquela relacionada com o deferimento de tutela de urgênciaacerca de tese já pacificada no Superior Tribunal de Justiça ou no Supremo Tribunal Federal, quando, no curso da ação, o tribunal respectivo modifica seu entendimento, mas infelizmente não modula os efeitos de sua decisão. Ganha relevância a presente hipótese considerando que na área previdenciária não é incomum isto acontecer. Alguns casos passados são paradigmáticos nesse sentido, como as alterações no limite quantitativo do nível de decibéis no agente ruído, para fins de aposentadoria especial, a questão do uso do EPI, a possibilidade de acumulação de auxílio-acidente com aposentadoria, a desaposentação, a conversão invertida para atividade exercida sob condições especiais, dentre muitas outras situações em que o STJ ou o STF promoveramalgumoverruling tácito, ou seja, alteraram seu posicionamento sobre determinados temas, sem maiores arrazoados sobre o momento em que a alteração passou a valer (omissão da análise da proteção da confiança nas cortes superiores).
As mudanças bruscas na jurisprudência, as quais transformam as teses das petições iniciais em algo contrário ao precedente, ante o deferimento de tutelas de urgência,ocasionarão situações peculiares, em especial no que tange à necessidade da devolução. Observar pia e cegamente o REsp 1.401.560, sem proceder ao devido distinguish poderá representar, nesses casos, severa agressão à segurança jurídica e à proteção da confiança. O Poder Judiciário, representado por suas cortes superiores, não pode se afastar da confiança depositada pelos jurisdicionados. A jurisprudência de um tribunal gravita em torno de permanências e evoluções, mas não se pode aceitar que mutações jurisprudenciais possam ter eficácia retrospectiva, sem qualquer proteção dos jurisdicionados que legitimamente se viam protegidos e vêm a perder o direito a uma tutela judicial, e ainda serão cobrados a devolver valores que legitimamente estavam recebendo (SOUZA, 2016, p. 209).
Ainda, o convívio com dois sistemas processuais – juizados especiais e rito comum, no âmbito da jurisdição previdenciária retroalimenta essa insegurança nos casos pacificados, o que ganha maior relevância com o advento dos incidentes de resolução de demandas repetitivas, previstos no novo CPC, que permitirão a formação de precedentes regionais. Muitas se tornam as formas, atualmente, de uma mesma matéria desembarcar no Superior Tribunal de Justiça.
A própria tese da repetibilidade dos valores correspondentes aos benefícios previdenciários recebidos em virtude de decisão que antecipa os efeitos da tutela posteriormente revogada, hoje em tramitação na primeira seção do STJ, é importante exemplo do overruling, pois já foi alterada em mais de uma ocasião.
Outra situação não menos realista seria aquela atinente às ações de restabelecimentos de benefícios previdenciários cessados pelo INSS.Repousa aqui a importância de uma visão aproximativa entre o processo administrativo e o processo judicial, para que não haja barreiras ao deferimento de medidas antecipatórias de tutela para hipóteses de insuficiência da atuação administrativa,feita sem fundamentação adequada e sem respeito ao devido processo legal. Nesse sentido, eis o reconhecimento dessas barreiras, feito pelo Ministro da Previdência Social, em entrevista em 12/03/2008: “Com isso, indefere-se demais e de forma indevida, sem preocupar-se notadamente com a humanização do atendimento e com a profissionalização dos servidores. Na dúvida, indefere e o Judiciário resolve, ou as juntas de recurso administrativo resolvem” (apud TRICHES, 2014, p. 151). Mas, será que, com a aplicação automatizada do REsp 1.401.560, o Judiciário conseguirá resolver o problema do cidadão?
Também em revisões em massa de benefícios, feitas pelos INSS, como aquelas que se operacionalizam no país atualmente, às vezes até mesmo por meio de ações coletivas(art. 29 da Lei 8.213/91 e revisão do teto das EC’s 20/98 e 41/2003, por exemplo), é possível que tenhamos que fazer as distinções acerca do REsp 1.401.560. Considerando os benefícios específicos, invariavelmente ocorrem equívocos de avaliações por parte do INSS que podem reduzir drasticamente o valor da aposentadoria de um beneficiário, gerando situações de urgência ante a necessidade do benefício no seu valor costumeiro. Interpretar literalmente o REsp 1.401.560 também impedirá a tutela judicial, antecipada e específica, para a correção desses erros.
O princípio, em todos os casos, a ser invocado éo da efetividade, pois sendo o processo o instrumento para a materialização dos direitos, necessário se faz buscar sua máxima efetividade. Este é o vetor que deve ser levado em consideração na promoção do distinguish do REsp1.401.560 para aplicação nos casos concretos, ante a nova fase jurisprudencial que se passará a enfrentar com o julgamento da matéria pelo STJ.
Aprofundando o estudo do princípio da efetividade, o professor BARBOSA MOREIRA o decompõe em cinco distintos pontos, a saber:
“a) o processo deve dispor de instrumentos de tutela adequados, na medida do possível, a todos os direitos contemplados no ordenamento, que resultam de expressa previsão normativa, que se possam inferir no sistema; b) esses instrumentos devem ser praticamente utilizáveis, ao menos em princípio, sejam quais forem os supostos titulares dos direitos de cuja preservação ou reintegração se cogita, inclusive quando indeterminado ou indeterminável o círculo dos eventuais sujeitos; c) impende assegurar condições propícias à exata e completa reconstituição dos fatos relevantes, a fim de que o convencimento do julgador corresponda, tanto quanto puder, à realidade; d) em toda a extensão a possibilidade prática, o resultado do processo há de ser tal que assegure à parte vitoriosa o gozo pleno da específica utilidade a que faz jus segundo o ordenamento; e) cumpre que se possa atingir semelhante resultado com o mínimo dispêndio de tempo e energias.” (MOREIRA, 1984, p. 27)
Junto com o princípio da efetividade cabe referir que a tese apresentada pelo STJ no REsp 1.401.560, caso aplicada sem critérios de distinção, desprestigiará o instituto da tutela de urgência, comprometendo-a por completo na medida em que a possibilidade de repetição acaba por incutir receio nos beneficiários, que poderão se abster do pleito antecipatório, mesmo havendo necessidade.
Estaria assim o segurado obrigado à submissão da morosidade dos processos judiciais, fato agravado ante a natureza alimentar de que se revestem as prestações requeridas? Não seria, nessa hipótese, o caso de considerarmos a lesão a um dos fundamentos próprios da República (art. 1º, III, Constituição Federal)? Como enfrentaria o Supremo Tribunal Federal a questão, sob este aspecto?
A promoção do distinguish da decisão do REsp 1.401.560 permitirátolerar que a parte hipossuficiente da relação previdenciária, o beneficiário, não seja a única responsabilizada pela alteração do entendimento no processo específico, sob penade se criar incentivo para a relativização do princípio da efetividade, delineado no art. 5º, XXXV, da CF. Isto, decerto e por si só, já é causa de repercussão geral, a justificar a superação do entendimento da própria Suprema Corte, no ARE 722421, e desta forma permitir a análise da questão constitucional que absorve o que se decidiu no REsp 1.401.560.
- CONSIDERAÇÕES FINAIS
A aplicabilidade do REsp 1.401.560 (Tema 692) como precedente repetitivo vinculante é imperiosa, diante da lógica necessidade de devolução dos valores recebidos por tutela antecipada, que posteriormente vem a ser revogada, tendo em vista o caráter precário e naturalmente reversível de tal decisão e a vedação ao enriquecimento sem causa.
Todavia, cotejando o precedente perante a doutrina processualista brasileira, o novo CPC e o princípio da proteção da confiança e seu embasamento constitucional na segurança jurídica e no Estado de Direito, bem como diante da inexistência de responsabilidade civil objetiva para a hipótese do art. 302, I, do CPC, é devida a distinção de situações fáticas que não se adequam ao referido precedente.
Desta forma, no decorrer do texto, podemos identificar quatro situações fáticas distintas, em que o precedente não se aplicaria, bem como uma quinta situação fática adequada à regra geral de cautela de qualquer magistrado, adequada ao precedente.
Destarte, ainda que se entenda que a responsabilidade civil para a devolução de valores recebidos em decorrência de tutela posteriormente revogada é objetiva (com o que não concordamos), realizando o mandamental distinguish no processo interpretativo do teor do REsp 1.401.560, entendemos que não se aplica o entendimento do REsp 1.401.560 a processos em que:
- a tutela judicial tenha sido concedida em cognição definitiva, isto é, quando tenha sido 1) concedida liminarmente e ratificada na sentença, 2) deferida na sentença, ou 3) deferida em sede recursal, nos termos dos arts. 932, II e 1.012, §1º, V, do CPC; bem como em que a tutela concedida seja de evidência e de cognição exauriente, nos termos do art. 311, incisos I e IV, do CPC;
- a tutela antecipada de urgência se fundamenta em decisão administrativa anterior que deferiu a mesma espécie de benefício previdenciário ao autor, em respeito ao princípio da proteção da confiança;
- na data da decisão liminar de tutela antecipada de urgência, a parte não estava assistida ou representada por advogado, ou, havendo tal representante, este não tivesse autorização da OAB para o exercício profissional ou não tivesse procuração nos autos;
- a decisão de tutela antecipada tenha sido deferida ex-officiopelo magistrado.
Por outro lado, em relação a benefícios previdenciários, o entendimento do referido acórdão deve predominar de forma vinculante, caso se trate de liminar deferida em cognição sumária, por tutela antecipada (de urgência ou de evidência) requerida pela parte, que venha a ser posteriormente revogada na sentença, que tenha sido deferida com base apenas nos argumentos e provas trazidos pelo indivíduo, sem contraditório efetivo e sem qualquer ato administrativo anterior favorável ao indivíduo, em processo com a presença de advogado constituído regularmente nos autos.
Como regra de ouro advinda do poder geral de cautela atinente a todo magistrado, ainda que se aplique o entendimento do REsp 1.401.560, em caso de tutela antecipada de urgência que venha a ser posteriormente revogada, caso não se entenda pela subsunção do caso concreto a alguma das quatro hipóteses anteriores de distinguish, é possível ao órgão jurisdicional competente para a revogação, residualmente, definir um termo inicial para a produção de efeitos de tal revogação, de acordo com o princípio da proteção da confiança legítima nos atos jurisdicionais, bem como na segurança jurídica, base do Estado de Direito.
Como essedistinguish ainda não foi realizado, ex-officio, pelo próprio STJ, os advogados, procuradores, órgãos administrativos, a doutrina e os magistrados em geral podem e devem fazê-lo, respeitada a necessidade de se desincumbir do relevante ônus de demonstrar a necessidade de distinção a seus casos concretos.
Nesse sentido, por exemplo, deve ser citada como modelar e paradigmática a recente decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, procedendo à distinção de hipóteses nas quais se aplicaria o precedente do STJ:
PREVIDENCIÁRIO. JUÍZO DE RETRATAÇÃO. ARTIGO 543-C, § 7º, II, DO CPC. BENEFÍCIO PERCEBIDO POR FORÇA DE ANTECIPAÇÃO DE TUTELA POSTERIORMENTE REVOGADA. RECURSO ESPECIAL REPETITIVO 1.401.560. INTERPRETAÇÃO COM TEMPERAMENTOS. DEVOLUÇÃO DOS VALORES. POSSIBILIDADE.
(…)
- Neste contexto, a melhor interpretação a ser conferida aos casos em que se discute a (ir)repetibilidade da verba alimentar previdenciária, deve ser a seguinte: a) deferida a liminar/tutela antecipada no curso do processo, posteriormente não ratificada em sentença, forçoso é a devolução da verba recebida precariamente; b) deferida a liminar/tutela antecipada no curso do processo e ratificada em sentença, ou deferida na própria sentença, tem-se por irrepetível o montante percebido; c) deferido o benefício em sede recursal, por força do art. 461 do CPC, igualmente tem-se por irrepetível a verba. (…)
(TRF4, Proc. 0016671-42.2011.404.9999/RS, 6ª T., Relª. p/ acórdão: VÂNIA HACK DE ALMEIDA, j. em 27/01/2016, D.E. 17/02/2016).
É relevante, por conseguinte, que toda a comunidade jurídica nacional continue a discussão por meio dos processos e trabalhos acadêmicos, com o intuito de instar o STJ a proceder ao distinguishoficial a respeito do Tema 692 (ou mesmo retornar a discuti-lo por ocasião dos debates acerca do Tema correlato n° 979), ou que o STF proceda ao reexame da repercussão geral dos recursos extraordinários correlatos, superando a jurisprudência defensiva produzida no ARE 722421,paralisando a aplicação acrítica dos arts. 1º a 3º da Portaria Conjunta AGU/INSS nº 2, de 16/01/2018, publicada no DOU de 22/01/2018, por parte da Administração Pública Federal,especialmente diante dos postulados axiológicos do acesso à ordem jurídica justa e efetiva, da independência judicial, da segurança jurídica e do Estado de Direito.
Esperamos que esse texto acadêmico logre os objetivos de instigar a comunidade jurídica a debater permanentemente o REsp 1.401.560 e seus efeitos, distinguindo devidamente as hipóteses em que ele é aplicável daquelas em que não deve ser aplicado,bem como permitindo a interpretação constitucional de suas consequências.
- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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NOTAS DE RODAPÉ
[1]Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense. Mestre em Justiça Administrativa da Universidade Federal Fluminense (PPGJA/UFF). Membro da Comissão de Direito da Seguridade Social da Escola da Magistratura Regional Federal da 2. Região (EMARF), do Tribunal Regional Federal da 2. Região. Juiz Federal do 11º. Juizado Especial Federal, do Rio de Janeiro/RJ, especializado em matéria previdenciária.
[2]Mestre em Direito Previdenciário pela PUC/SP. Especialista em Direito Público pela PUC/RS. Conselheiro Deliberativo da OABPREV-RS. Diretor Adjunto de atuação judicial do IBDP. Advogado com atuação na área previdenciária. Professor no Curso de Graduação em Direito na Unicnec/Osório e em cursos de pós-graduação em Direito Previdenciário.
[3] Código Civil, art. 884: “Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários.”
[4] Disponível em: https://www2.trf4.jus.br/trf4/controlador.php?acao=noticia_visualizar&id_noticia=13123. Acesso em 14.09.2017.
[5]RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. PREVIDENCIÁRIO E PROCESSUAL CIVIL. VALORES RECEBIDOS EM VIRTUDE DE CONCESSÃO DE ANTECIPAÇÃO DE TUTELA POSTERIORMENTE REVOGADA. DEVOLUÇÃO. MATÉRIA DE ÍNDOLE INFRACONSTITUCIONAL. OFENSA INDIRETA À CONSTITUIÇÃO. REPERCUSSÃO GERAL. INEXISTÊNCIA. I – O exame da questão constitucional não prescinde da prévia análise de normas infraconstitucionais, o que afasta a possibilidade de reconhecimento do requisito constitucional da repercussão geral. II – Repercussão geral inexistente. (ARE 722.421 RS, Relator Ministro PRESIDENTE, julgado em 19/03/2015, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-061 DIVULG 27/03/2015 PUBLIC 30/03/2015).
[6]Ad argumentandum, vale frisar que a quaestio juris delimitada no Tema 692 não se confunde com uma outra questão muito próxima, também travada no mesmo STJ, que é a do Tema 979 – Devolução ou não de valores recebidos de boa-fé, a título de benefício previdenciário, por força de interpretação errônea, má aplicação da lei ou erro da administração da Previdência Social – cujo REsp representativo, nº 1.381.734/RN, é de Relatoria do Ministro Benedito Gonçalves, e no qual houve decisão em 16/08/2017[6], em que se suspenderam todas as ações, individuais ou coletivas, nas quais se discuta tal devolução. No Tema 692 se discutiram devoluções decorrentes de revogações de decisões judiciais de tutela; no Tema 979 se discutirão os argumentos de boa-fé do cidadão e erro administrativo em devoluções cobradas pelo INSS.
[7]“§ 3o Serão inscritos em dívida ativa pela Procuradoria-Geral Federal os créditos constituídos pelo INSS em razão de benefício previdenciário ou assistencial pago indevidamente ou além do devido, hipótese em que se aplica o disposto na Lei no 6.830, de 22 de setembro de 1980, para a execução judicial.”
[8]“Art. 1º A cobrança dos valores pagos a título de benefício previdenciário concedido por decisão judicial provisória que é posteriormente revogada ou reformada, ou por decisão transitada em julgado que venha a ser rescindida, deverá ser processada, preferencialmente: I – nos próprios autos do processo judicial em que proferida a decisão provisória que é posteriormente revogada ou reformada; II – nos autos do processo da ação rescisória, quando se tratar de desconstituição de decisão com trânsito em julgado. § 1º Os procuradores deverão abrir tarefa via SAPIENS ao Setor de Cálculos da Procuradoria para elaboração da conta de liquidação, quando intimados da certidão de trânsito em julgado da decisão que julgou improcedente o pedido inicial e revogou a tutela antecipada anteriormente deferida. § 2º Nas hipóteses deste artigo, os cálculos serão atualizados apenas com incidência da respectiva correção monetária, tendo em vista que ainda não caracterizada a mora por parte do beneficiário. Art. 2º Nos casos em que restar obstaculizado ou infrutífero o procedimento previsto no art. 1º, o INSS deverá promover a cobrança dos valores de forma administrativa, salvo se houver decisão judicial que a proíba. § 1º Compete ao órgão de execução da PGF que atuou no processo judicial encaminhar ao INSS manifestação conclusiva acompanhada dos documentos e informações necessárias à cobrança administrativa. § 2º A cobrança administrativa consistirá na notificação do segurado para promover a devolução dos valores recebidos indevidamente, instruída com a respectiva Guia de Recolhimento da União – GRU, preenchida com o valor apurado/a ser parcelado. § 3º Transcorrido o prazo para pagamento ou parcelamento da GRU remetida juntamente com a notificação de cobrança, sem que tenha havido êxito no pagamento ou parcelamento espontâneo do valor cobrado, deverá o INSS promover a operacionalização de desconto em benefício ativo do segurado. § 4º Não haverá instrução, nem a necessidade de oportunizar prazo para defesa no âmbito do processo administrativo de cobrança, resguardando-se a eficácia preclusiva da coisa julgada formada pelo processo judicial já transitado em julgado, no bojo do qual o segurado já pôde exercer o seu direito à ampla defesa e ao contraditório, em feito conduzido pelo Poder Judiciário de acordo com a legislação processual civil, que culminou na formação de um título executivo judicial apto a ser exigido, na forma do art. 515, I, do Código de Processo Civil/2015. Art. 3º Não sendo possível ou restando infrutífera a cobrança na forma prevista nos arts. 1º e 2º, será promovida a inscrição do débito em Dívida Ativa por meio da Equipe Nacional de Cobrança – ENAC, da Coordenação Geral de Cobrança da Procuradoria Geral Federal – CGCOB/PGF, com a consequente adoção das demais medidas previstas na legislação para a cobrança do débito, salvo se houver decisão judicial que impeça o ressarcimento.”
[9]“Art. 927. […] Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.”
[10] Leia-se o trecho final do acórdão da Corte Especial do STJ (não é de Turma ou Seção) no EREsp 1086154/RS, Rel. Ministra Nancy Andrighi, julgado em 20/11/2013 e publicado no DJe de 19/03/2014:“[…] 4. Na hipótese, impor ao embargado a obrigação de devolver a verba que por anos recebeu de boa-fé, em virtude de ordem judicial com força definitiva, não se mostra razoável, na medida em que, justamente pela natureza alimentar do benefício então restabelecido, pressupõe-se que os valores correspondentes foram por ele utilizados para a manutenção da própria subsistência e de sua família. Assim, a ordem de restituição de tudo o que foi recebido, seguida à perda do respectivo benefício, fere a dignidade da pessoa humana e abala a confiança que se espera haver dos jurisdicionados nas decisões judiciais. 5. Embargos de divergência no recurso especial conhecidos e desprovidos.”
[11] ARAÚJO, Valter Shuenquener de. O princípio da proteção da confiança: uma nova forma de tutela do cidadão diante do Estado.Niterói: Impetus, 2009, p. 82.
[12] ARAÚJO, Valter Shuenquener de. O princípio da proteção da confiança: uma nova forma de tutela do cidadão diante do Estado.Niterói: Impetus, 2009, p. 95: “Há atualmente uma proliferação de normas que colidem com a Constituição do Brasil. Seja por conta da vulgarização de textos infraconstitucionais, seja pela falta de preparo técnico dos agentes públicos, ou mesmo pelo fato de o Brasil possuir uma Constituição analítica que de tudo procura cuidar, estamos vivendo uma época da história de nosso país em que textos jurídicos são comumente declarados inconstitucionais. E o pior é que, em inúmeras situações, esse reconhecimento ocorre muitos anos após a entrada em vigor do dispositivo tido por inconstitucional. Quando isso acontece, é natural que o texto viciado, ainda que inconstitucional, possa ter criado expectativas legítimas nas mentes dos cidadãos. E, conformeadverte STEFAN MUCKEL, a confiança depositada num texto inconstitucional não é, em princípio, de valor inferior que a confiança baseada numa lei válida. Dessa maneira, o princípio da proteção da confiança também pode justificar a preservação de um ato praticado com esteio em um dispositivo inconstitucional.”
[13]Assim descreve Daniel Mitidiero: “A doutrina, de um modo geral, nega a possibilidade de o juiz antecipar a tutela jurisdicional de ofício. E quando admite, a franquia está circunscrita normalmente ao âmbito da antecipação da tutela cautelar, partindo-se do equivocado pressuposto de que aí o órgão jurisdicional estaria apenas protegendo o processo, sem incidir sobre o direito material, atuando apenas para ‘preservar a utilidade do resultado do processo’. É preciso repensar o problema. É certo que, a princípio, a antecipação de tutela está reservada aos casos em que há requerimento da parte (art. 2º, CPC). Como a técnica antecipatória adianta no tempo proteção ao direito da parte, seja para satisfazê-lo desde logo, seja para acautelá-lo para realização futura, é natural que o seu emprego esteja condicionado ao requerimento da parte interessada. No entanto, depois de proposta a ação visando à tutela do direito, a liberdade e a autonomia privada prestigiadas pelo princípio da demanda encontram-se devidamente resguardadas: o direito só será protegido mediante tutela satisfativa ou tutela cautelar porque a parte assim entendeu conveniente e conforme ao seu interesse. A partir daí o problema transfere-se do plano da iniciativa para o plano da condução do processo. Se é certo que historicamente já se entendeu como uma projeção necessária do princípio da demanda o princípio dispositivo (ou, mais propriamente, o princípio dispositivo em sentido processual, também conhecido como Verhandlungsgrundsatz ou Beibringungsgrundsatz), que reserva também às partes a livre condução do processo, hoje está assente que a sua condução deve ser realizada pelo juiz em clima de permanente colaboração com as partes. A solução para o problema está em possibilitar ao juiz a consulta à parte que poderá se beneficiar pela antecipação de tutela. O juiz poderá consultar a parte se a mesma tem interesse na obtenção da tutela antecipada, fundado em seu dever de cooperação (art. 6º, CPC). Com isso, equilibra-se a iniciativa judicial, inspirada na promoção da igualdade entre os litigantes e à adequação da tutela jurisdicional, e o respeito à liberdade da parte, que pode não ter interesse em fruir de decisão provisória ao longo do procedimento, mormente em face do regime de responsabilidade civil inerente à tutela sumária (art. 302, CPC).” (MITIDIERO, 2017, p. 109-110).
[14]Ver dissertação de mestrado apresentada em 2007 na UERJ por Patrícia Perrone Campos Mello, sob o título O desenvolvimento judicial do direito no constitucionalismo contemporâneo.